11 de jun. de 2009

É precisu sabê vivê

Seu Nécio, homem respeitado na vila e na vida, vê seu afilhadinho mirradinho, o qual ele chama de ‘Doidinhu’ (é, falta-lhe um adjetivo melhor), sozinho e emburrado, com uma cara de lua cheia, lá no canto do celeiro.
Não contente com aquilo, Seu Nécio, movido pela curiosidade monstruosa, vai até o pequenino:

- Ô Doidinhu! Que qui tu tá fazendu ai rapaiz?
- Sabi Seu Nércio... Discubri uma coisa triste...
- E o que qui foi rapaizinho? – Indaga o homem, com seu pitaco na boca.
- Seu Nércio, eu tenho medo de aviãu.
- Ora, que issu meu coisinho! Nessa idade ocê já tem medo das coisa?
- Como assim tiô?

Diante da resposta, Nécio levanta a manga de sua camisa surrada e quadriculada e deixa à mostra seu punho enfaixado e sem uma mão, item até então dispensável a ele:

- Tá vendu issu garotu? – Pergunta Seu Nécio, incisivo.
- To sim tiô. Já sabia qui ôce é maneta. Mas u qui issu tem ave cum aviãu?
- Issu aqui Doidinhu, foi na minha épuca de mulecagi. – E Seu Nécio estufado de orgulho - Eu cortava cana mulequi... Mas eu nunca perdi as esperanças di vivê numa vida meior, sabe? Mermo quandu perdi minha mão, nunca parei de batalhar. E vê como bem agora Doidinhu!
- É mermu Tiô! – Doidinho sorriu pela primeira vez naquela conversa.
- E adivinha pusque eu sobrevivi Doidinhu?
Doidinhu pensa, pensa e responde:
- Num sei Seu Nércio.
- Pusque eu não tive medu mulequi lazarento! – E Nécio se infla ainda mais de orgulho – E si desde então, nada mi põe medo Doidinhu... O que dirá um aveauzinhu! – E o velho homem solta uma gostosa gargalhada.
- Mas Seu Nércio... E se u aviãu cai cum ocê?

Seu Nécio não responde rápido. Primeiro olha nos olhos do menino apavorado. Entre um pitaco e outro em seu cachimbo solta um leve sorrisinho. E daí responde:

- E se o aviãu num caí, mulequizinho?

...

O medo do garoto provinha da viagem que Seu Nécio iria fazer até o exterior para visitar sua filha, que tinha ido até lá para trabalhar. E apesar de não saberem, tanto a preocupação de um quanto a tranqüilidade do outro eram relevantes. É que Seu Nécio até tinha uma ótima memória, mas justamente um detalhe mínimo (até então) ele havia deixado passar: Afinal, qual era o número do seu vôo mesmo?
Ele não sabia ao certo, apenas se lembrava vagamente de ser algo em torno de 447 ou 448.

Mas isso pouco importava. Seu Nécio sabia viver.

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Recomendações da semana:

  • Pergunte ao Urso:Blog ótimo para quem é adepto da máxima ' Perguntas idiotas, tolerância zero!'
  • Dois vezes Um:Um Blog só com diálogos. Interessante a forma como as críticas e opiniões se apresentam no modelo de conversas informais. Vale pela criatividade!
  • Se lembram do meu antigo post, falando do ensino no Brasil em geral -Sodomizem os Livros- . Então... Encontrei uma notícia mostrando justamente um especialista fazendo tudo aquilo que eu quis mostrar aqui. -'Quero provar que não há aluno ruim' - E tem mais: Ele 'é cria' de um colégio que segue a linha de pensamento de Paulo Freire. Só seguindo esses exemplos podemos mudar algo nesse ensino...
Grandes abraços!
E até mais!

1 críticas - Comente!:

Renato disse...

Caraca... Que texto fiô... rsrsrs...
è o inverso do meu post 'retrato'! Me envergonho de pessoas que citei lá, porém me orgulho de saber e ter certeza que realmente existem cidadões como seu Nécio, que mesmo com os problemas não desistem...
Abss...

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